segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Preciso Acordar!

Após vários anos de treino, alcancei um elevado grau na arte de dormir em ônibus. E por considerar isto uma arte, trato de exercitá-la sempre. Mesmo sob as condições mais adversas e ignóbeis. Como a de viajar nos ônibus das empresas que trafegam entre minha cidade e Fortaleza.

Mas não foi sempre assim. No início de minhas viagens, nas Eras dos 90, ficava o tempo inteiro desperto.

Decifrando as escritas exóticas atrás dos bancos adquiri o sentido da posteridade (entidade tão desprezada no atual contexto informatizado). Observando as caixas de acerolas aprendi o senso do apreender (qualidade desvalorizada no vigente ambiente do descartável). Admirado com a superlotação absorvi o conceito da união (objeto desprezado nestas paragens africanas).
Assim, fui elevando meu sensor sentimental. Polindo meus dotes filosóficos, somando imagens e idéias; ficando de saco cheio de ver as mesmas caras todos os dias. E eram caras feias.
Isso tudo teve seu limite. Logo, tive que criar maneiras de entreter-me durante aqueles transcursos semi-intermináveis.

Historicamente desde o advento do ônibus, a viagem Fortaleza-Maranguape demora uma hora. Mas isso não é uma regra. Alguns intrépidos motoristas arriscam suas vidas, numa demonstração de sangue frio e habilidade, dirigindo veículos sucateados a mais de cem por hora. Isso propicia uma evidente redução no tempo do itinerário. Outros, porém, guiam seus “carros” com a doçura de um Morgan Freeman em Conduzindo Miss Dayse. Confesso que quando isto ocorre nenhum passageiro torna-se disposto a encarnar uma Dayse. Então resolvi ordenar os motoristas dos mais rápidos aos mais lentos. Isso me ocuparia nas viagens, cheias de tomadas de tempo parciais, ajudando-me a definir os melhores horários e “chofers” para que eu próprio perdesse menos tempo nos ônibus.

E assim fiz! Por três meses levantei dados, preenchi planilhas, organizei tabelas, calculei médias e desvio padrão; modas e distribuição normal; criei interseções de dados fantásticas que muitas vezes nem eu sabia interpretar. Mas cheguei a uma conclusão: aquilo tudo não servia pra nada!

Depois da frustração do meu “ranking da velocidade” parti para a literatura. Passei a comprar um cem número de livros e pedir emprestado outros tantos com o intuito de ocupar-me. A leitura seria uma saída duplamente satisfatória. Uma vez distraído, absorto nas idéias de autores diversos não veria o tempo passar e quando menos esperasse lá estava eu chegando ao centro da capital. Não foi assim! Meu subconsciente marcava cada intervalo, cada curva, cada marcha mudada e o ruído de fundo que era alto demais acabavam por me distrair, tirando o mérito da leitura. Eu ficava enjoado e com dor de cabeça, desmotivado para permanecer lendo.
Dias depois estava eu correlacionando a angulação da luz solar através das janelas dos ônibus com a precessão dos equinócios. Avaliando como a resistência do ar se alterava a partir do número de janelas abertas. Verificando o efeito Doppler na Av. Osório de Paiva. Calculando a velocidade de queda dos pingos de chuva medindo a tangente entre tal velocidade e a velocidade do ônibus. Comprovando o poder de meu Anjo da Guarda por me proteger da morte num ônibus em altíssima velocidade.

Quando já aceitava o tédio das viagens houve um sinal de mudança. O livro “The Search for Bridey Murphy” de Morey Bernstein me deu a resposta.

Foram anos de condicionamento auto-hipnótico. Foram meses de buscas numa época em que não existia a Internet como nós a conhecemos. Artigos sobre como hipnotizar galinhas. Teses sobre Mesmerismo, Magnetismo animal e seitas tibetanas. Dedicação e disciplina alimentadas por um objetivo nobre: dormir no ônibus.

As maiores dificuldades residiam no tempo para o efeito. No início das experiências auto-hipnóticas eu demorava muitos minutos até atingir um nível satisfatório de relaxamento. Mas eu precisava encurtar este tempo para pouquíssimos minutos. Treinei. E assim foi. Consegui um sono rápido, com sonho e tudo. Um paradoxo entre estar relaxado e rígido (não pretendia cair no colo de ninguém). Uma proeza dormir em um lugar tão barulhento e desconfortável.

Hoje me sinto bem mais imune ao Forró, aos solavancos, às caixas de acerolas, ao Sol e a chuva; à lotação e aos engarrafamentos. Eu durmo! E sonho com a decência que nos falta. Sonho com um preço justo das passagens. Sonho com o cavalheirismo e o respeito.. A janela não oferece a paisagem bonita. Os passageiros refugiaram-se nos seus fones de ouvido. Temendo o isolamento crescente acabei por me isolar.

Acho que tenho que recondicionar minha mente. Preciso acordar! Faltou verificar como o efeito da alta velocidade altera o desenvolvimento dos fungos na tapioca.

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